segunda-feira, 28 de novembro de 2016

trecho o cemitério

Stephen King

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Provavelmente é um erro acreditar que exista um limite para o horror que a mente humana pode suportar. Parece, ao contrário, que certos mecanismos exponenciais começam a prevalecer à medida que o infortúnio se torna mais profundo. Por menos que se goste de admitir, a experiência humana tende, sob muitos aspectos a corroborar a ideia de que quando o pesadelo se torna terrível o bastante, o horror produz mais horror, um mal que acontece por acaso engendra outro, frequentemente menos ocasional, até que finalmente a desgraça parece tomar conta de tudo. E a mais aterradora de todas as questões talvez seja simplesmente querer saber quanto horror a mente humana consegue suportar conservando uma atenta, viva, implacável sanidade.

CONTO Hoje de Madrugada

Raduan Nassar

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O que registro agora aconteceu hoje de madrugada quando a porta do meu quarto de trabalho se abriu mansamente, sem que eu notasse. Ergui um instante os olhos da mesa e encontrei os olhos perdidos da minha mulher. Descalça, entrava aqui feito ladrão. Adivinhei logo seu corpo obsceno debaixo da camisola, assim como a tensão escondida na moleza daqueles seus braços, enérgicos em outros tempos. Assim que entrou, ficou espremida ali no canto, me olhando. Ela não dizia nada, eu não dizia nada. Senti num momento que minha mulher mal sustentava a cabeça sob o peso de coisas tão misturadas, ela pensando inclusive que me atrapalhava nessa hora absurda em que raramente trabalho, eu que não trabalhava. Cheguei a pensar que dessa vez ela fosse desabar, mas continuei sem dizer nada, mesmo sabendo que qualquer palavra desprezível poderia quem sabe tranquilizá-la. De olhos sempre baixos, passei a rabiscar no verso de uma folha usada, e continuamos os dois quietos: ela acuada ali no canto, os olhos em cima de mim; eu aqui na mesa, meus olhos em cima do papel que eu rabiscava. De permeio, um e outro estalido na madeira do assoalho.


Não me mexi na cadeira quando percebi que minha mulher abandonava o seu canto, não ergui os olhos quando vi sua mão apanhar o bloco de rascunho que tenho entre meus papéis. Foi uma caligrafia rápida e nervosa, foi uma frase curta que ela escreveu, me empurrando o bloco todo, sem destacar a folha, para o foco dos meus olhos: 'vim em busca de amor' estava escrito, e em cada letra era fácil de ouvir o grito de socorro. Não disse nada, não fiz um movimento, continuei com os olhos pregados na mesa. Mas logo pude ver sua mão pegar de novo o bloco e quase em seguida me devolvê-lo aos olhos: 'responda' ela tinha escrito mais embaixo numa letra desesperada, era um gemido. Fiquei um tempo sem me mexer, mesmo sabendo que ela sofria, que pedia em súplica, que mendigava afeto. Tentei arrumar (foi um esforço) sua imagem remota, iluminada, provocadoramente altiva, e que agora expunha a nuca a um golpe de misericórdia. E ali, do outro lado da mesa, minha mulher apertava as mãos, e esperava. Interrompi o rabisco e escrevi sem pressa: 'não tenho afeto para dar', não cuidando sequer de lhe empurrar o bloco de volta, mas nem foi preciso, sua mão com a avidez de um bico, se lançou sobre o grão amargo que eu, num desperdício, deixei escapar entre meus dedos. Mantive os olhos baixos, enquanto ela deitava o bloco na mesa com calma e zelo surpreendentes, era assim talvez que ela pensava refazer-se do seu ímpeto.


Não demorou, minha mulher deu a volta na mesa e logo senti sua sombra atrás da cadeira, e suas unhas no dorso do meu pescoço, me roçando as orelhas de passagem, raspando o meu couro, seus dedos trêmulos me entrando pelos cabelos desde a nuca. Sem me virar, subi o braço, fechei minha mão no alto, retirando sua mão dali como se retirasse um objeto corrompido, mas de repente frio, perdido entre meus cabelos. Desci lentamente nossas mãos até onde chegava o comprimento do seu braço, e foi nessa altura que eu, num gesto claro, abandonei sua mão no ar. A sombra atrás de mim se deslocou, o pano da camisola esboçou um voo largo, foi num só lance para a janela, havia até verdade naquela ponta de teatralidade. Mas as venezianas estavam fechadas, ela não tinha o que ver, nem mesmo através das frinchas, a madrugada lá fora ainda ressonava. Espreitei um instante: minha mulher estava de costas, a mão suspensa na boca, mordia os dedos.


Quando ela veio da janela, ficando de novo a minha frente, do outro lado da mesa, não me surpreendi com o laço desfeito do decote, nem com os seios flácidos tristemente expostos, e nem com o traço de demência lhe pervertendo a cara. Retomei o rabisco enquanto ela espalmava as mãos na superfície, e, debaixo da mesa, onde eu tinha os pés descalços na travessa, tampouco me surpreendi com a artimanha do seu pé, tocando com as pontas dos dedos a sola do meu, sondando clandestino minha pele no subsolo. Mais seguro, próspero, devasso, seu pé logo se perdeu sob o pano do meu pijama, se esfregando na densidade dos meus pelos, subindo afoito, me queimando a perna com sua febre. Fiz a tentativa com vagar, seu pé de início se atracou voluntarioso na barra, e brigava, resistia, mas sem pressa me desembaracei dele, recolhendo meus próprios pés que cruzei sobre a cadeira. Voltei a erguer os olhos, sua postura, ainda que eloquente, era de pedra: a cabeça jogada em arremesso para trás, os cabelos escorridos sem tocar as costas, os olhos cerrados, dois frisos úmidos e brilhantes contornando o arco das pálpebras, a boca escancarada, e eu não minto quando digo que não eram os lábios descorados, mas seus dentes é que tremiam.


Numa arrancada súbita, ela se deslocou quase solene em direção à porta, logo freando porém o passo. E parou. Fazemos muitas paradas na vida, mas supondo-se que aquela não fosse uma parada qualquer, não seria fácil descobrir o que teria interrompido o seu andar. Pode ser simplesmente que ela se remetesse então a uma tarefa trivial a ser cumprida quando o dia clareasse. Ou pode ser também que ela não entendesse a progressiva escuridão que se instalava para sempre em sua memória. Não importa que fosse por esse ou aquele motivo, só sei que, passado o instante de suposta reflexão, minha mulher, os ombros caídos, deixou o quarto feito sonâmbula.

Publicado originalmente em "Menina a caminho e outros textos" - Editora Companhia das Letras - Lançamento 1997, Prêmio Jabuti 1998 de Melhor Livro de Contos e Crônicas.

mundo de k.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016

terça-feira, 22 de novembro de 2016

MAKING OF MEU ÓDIO SERÁ TUA HERANÇA

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Sam Peckinpah dirige Aurora Clavel e William Holden no set de Meu ódio será tua herança (The wild bunch), meu filme preferido do velho e saudoso beberrão. Temas recorrentes dos westerns de Peckinpah aparecem aqui com uma maestria poucas vezes alcançada: a câmera-lenta, a violência explícita, a melancolia, o entardecer de uma época e heróis amorais e violentos. O tipo de filme que trás lágrimas aos olhos.

FRAMES FOGO CONTRA FOGO

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Se em John Woo temos o melhor exemplo dos tiroteios estilizados, é em Michael Man que encontramos o melhor da matança à bala realista, sendo Fogo contra fogo, na sequência acima, o melhor exemplo desta última. E sim, até hoje ambos são insuperáveis.

PÁGINA O FOTÓGRAFO

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A um tempo: reportagem, biografia, quadrinhos e fotos – um amálgama fascinante de uma época e um país exótico, uma aventura inspiradora. O tipo de viagem a mudar uma vida.

TRECHO Os Miseráveis

Victor Hugo

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“Já perscrutamos bastante as profundezas dessa consciência e é chegado o momento de continuarmos a examiná-la. Não o fazemos sem emoção ou estremecimento. Nada existe mais terrível que esse tipo de contemplação. Os olhos do espírito não podem encontrar em nenhum lugar nada mais ofuscante, nada mais tenebroso que o homem; não poderão fixar-se em nada mais temível, mais complicado, mais misterioso e mais infinito. Existe uma coisa que é maior que o mar: o céu. Existe um espetáculo maior que o céu: é o interior de uma alma.”

OLHOS AZUIS, CABELOS RUBROS

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A TRIBUTE TO DENIS VILLENEUVE

O diretor canadense, ainda com uma curta filmografia, já demonstra a habilidade inata dos grandes cineastas. Filmes para se ver e rever.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Trecho Alice no país das maravilhas

Lewis Carroll

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“- Mas eu não quero ir parar no meio de gente maluca – observou Alice.
– Ah, não adianta nada você querer ou não – disse o Gato. – Nós somos todos loucos por aqui. Eu sou louco. Você é louca.
– E como você sabe que eu sou louca? – perguntou Alice.
– Bem, deve ser – disse o Gato – ou então você não teria vindo parar aqui.”

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

terça-feira, 15 de novembro de 2016

FRAMES A MARCA DA MALDADE

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Uma dica. Veja este filme. É o meu preferido de Orson Welles. Um noir filmado de maneira impressionante. Como um pesadelo em preto e branco, cheio de personagens ambíguos e amorais.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

HOSTIL

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Um quadrinho de Felipe Portugal.

TRAILER Live by Night

Um puta trailer. Baseado em um livro de Dennis Lehane, um ótimo autor, com um elenco inspirado e um diretor que só cresce a cada filme. A esperança de um filmaço de gangster é algo mais que apenas uma possibilidade.

NA DIMENSÃO DE STEVE DIKTO

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E o Dr. Estranho avançou passo a passo através da dimensão da eternidade…

FRAMES A MOSCA DA CABEÇA BRANCA

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Um trash maravilhoso, baseado em um conto de George Langelaan, com direito à Vincent Price, máscaras monstruosas fuleiras e gritos estridentes de heroínas apavoradas. Um deleite.

ESCOLHA trainspotting 2

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“Escolha a vida
Escolha o Facebook, o Twitter, o Instagram e espere que alguém em algum lugar se importe
Escolha olhar para os velhos tempos, querendo ter feito tudo diferente
E escolha ver a história se repetir
Escolha seu futuro
Escolha programas de reality TV, humilhar mulheres, usar pornô como vingança,
Escolha um contrato de trabalho sem mínimo de horas, uma ida de duas horas para chegar ao trabalho
E escolha o mesmo para seus filhos, só que pior, e alivie a dor com uma dose desconhecida de uma droga desconhecida feita na cozinha de alguém
E então… Respire fundo
Você é um viciado, por isso se vicie
Vicie-se em outra coisa
Escolha o que você ama
Escolha seu futuro
Escolha a vida.”

domingo, 6 de novembro de 2016

A MAIOR PRESA DE MING

PATRiCiA HiGHSMiTH

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Ming descansava ao pé do beliche de sua dona quando o homem o agarrou pela nuca, jogou-o no convés e fechou a porta da cabina. Ming arregalou de espanto e de uma raiva fugaz os seus olhos azuis que quase se fechavam por causa do sol forte. Não era a primeira vez que o atiravam para fora da cabina, o homem fazia sempre isso quando a dona, Elaine, não estava olhando.

O veleiro não tinha proteção contra o sol mas o calor não incomodava Ming. Pulou fácil para o teto da cabina e daí para o rolo de corda atrás do mastro. Gostava de deitar no rolo de corda, bem no centro do barco: lá de cima enxergava tudo e se protegia do vento e não sentia tanto o balanço do White Lark. Elaine e o homem tinham almoçado e costumavam fazer a sesta depois de comer. Ming sabia que o homem não gostava de vê-lo na cabina nessa hora. Mas tudo bem. Também acabara de almoçar - um peixe grelhado delicioso e um pedaço de lagosta. Bocejou, deitado na curva do rolo de corda, e semicerrando os olhos contra o sol forte, olhou para as colinas, as casas e os hotéis brancos e rosados da baía de Acapulco. Entre o White Lark e a praia, onde gente chapinhava inaudivelmente na água, o sol cintilava no mar como milhares de luzes elétricas piscando. Passou um esquiador levantando borrifos brancos atrás de si. Quanta atividade! Ming cochilou, sentindo o calor no pêlo.

Vinha de Nova York e Acapulco era bem melhor se comparado ao lugar de suas primeiras semanas de vida. lembrava-se de uma caixa sem sol, com palha no fundo, junto com outros três ou quatro gatinhos e uma janela onde formas gigantescas paravam, tentavam chamar-lhe a atenção batendo no vidro e seguiam em frente. Não lembrava da mãe. Um dia uma moça com cheiro agradável entrou e levou-o consigo - para longe do cheiro ruim e assustador de cães, de remédios e de cocô de papagaio. Depois entraram no que Ming agora sabia ser um avião. Acostumara-se muito bem aos aviões e gostava bastante deles: ia sentado ou dormindo no colo de Elaine e, se sentia fome, sempre havia alguma coisa para comer.

Elaine passava o dia numa loja em Acapulco. Havia vestidos, blusões e roupas de praia pendurados nas paredes. O lugar cheirava a limpeza. Havia flores em vasos e, do lado de fora, em caixas. O chão era de ladrilhos brancos e azuis. Ming tinha liberdade para sair para o pátio no fundo, ou dormir em sua cesta num canto. Na frente havia mais sol, mas havia garotos malvados que tentavam pegá-lo e ali Ming nunca se descontraía.

Gostava mesmo era de se deitar ao sol com a dona numa das espreguiçadeiras de lona no terraço de casa. Mas não gostava das pessoas que ela às vezes convidava, dezenas de pessoas que passavam a noite, que ficavam acordadas até tarde, comendo e bebendo, ouvindo discos ou tocando piano - pessoas que o separavam de Elaine. Pessoas que lhe pisavam nas patas; pessoas que, às vezes, o pegavam por trás, desprevenido, e ele tinha de lutar para se soltar; pessoas que lhe passavam a mão com rudeza; pessoas que às vezes fechavam alguma porta, deixando-o trancado. Gente! Ming detestava gente. No mundo inteiro, só gostava de Elaine. Ela o amava e compreendia.

Detestava agora, em especial, aquele homem chamado Teddie. Teddie agora vivia por perto o tempo todo e Ming não gostava do jeito que o homem o encarava quando Elaine não estava olhando. Às vezes, na ausência da dona, Teddie murmurava coisas que Ming entendia como uma ameaça, ou uma ordem para que saísse. Ele reagia com calma: era preciso preservar a dignidade. Além do mais, não tinha a dona a seu lado? O homem é que era o intruso. Quando Elaine estava perto Teddie fingia gostar dele. Só que Ming sempre se afastava.

Seu cochilo foi interrompido. Elaine e o homem riam e falavam. O grande sol alaranjado estava perto do horizonte.
- Ming! - Elaine chegou perto dele - Você não está se torrando nesse sol, meu querido? Pensei que estivesse lá dentro! - Eu também! - mentiu Teddie.
Ming ronronou. A dona aninhou-o nos braços e levou-o para baixo, para a sombra fria da cabina. Falava com o homem, aborrecida. Pousou Ming diante da tigela de água. Ele bebeu uns goles, mesmo sem sede, para agradá-la. Cambaleava um pouco, meio tonto por causa do calor.
Elaine pegou uma toalha úmida e passou-lhe na cara, nas oreIhas e nas patas. Deitou-o gentilmente no beliche que tinha o perfume dela mas também o cheiro do homem a quem Ming detestava.

Ming sabia que estavam brigando pelo tom das vozes. Ela sentou-se na beirada do beliche e ficou com ele. Depois Ming ouviu o mergulho de Teddie. Teve a esperança de que o homem se afogasse e não voltasse nunca mais. Elaine molhou uma toalha de banho, torceu-a, estendeu-a sobre o beliche e colocou Ming sobre ela. Trouxe água, que ele, agora com sede, tomou. Deixou-o dormir enquanto lavava e guardava os pratos. Sons confortantes que Ming gostava de ouvir. Mas logo houve outro plesh-plop: os pés molhados de Teddie no convés. Ming acordou.

A discussão recomeçou. Elaine subiu a escadinha até o convés. Ming ficou de olho na porta, tenso mas ainda com o queixo apoiado na toalha úmida. Ouvira os pés de Teddie descendo. Levantou a cabeça, ciente de que estava encurralado na cabina. O homem parou e olhou para ele, com uma toalha na mão. Ming se espreguiçou como se preparasse um bocejo e deixou que a língua meio para fora da boca. O homem fez que ia dizer alguma coisa, deu a impressão de querer jogar a toalha em cima dele, mas hesitou e não disse nada. Jogou a toalha na pia e lavou o rosto. Não era a primeira vez que Ming lhe mostrava a língua. Muita gente ria quando ele fazia isso, principalmente em festas, e Ming gostava da reação. Mas sentia que para Teddie aquilo era como um gesto hostil e por isso lhe mostrava a língua de propósito, enquanto que para os outros costumava ser por acidente.

A briga continuou. Elaine fez café. Ming começou a se sentir melhor e voltou para o convés. O sol tinha-se posto. O barco ia em direção à praia. Ming ouviu pássaros e um ou outro guincho das aves que só gritavam ao pôr-do-sol. Olhou para a casa sobre o penhasco onde morava com a dona. Sabia que ela não o deixava lá (onde ele ficaria mais confortável) quando saía de barco por temer que alguém tentasse pegá-lo e até mesmo matá-lo. Ming entendia. Haviam tentado agarrá-lo diante de Elaine. Uma vez o enfiaram de repente num saco de pano. Lutou muito mas não sabia se escaparia sem Elaine. Ela bateu no garoto e arrancou o saco da mão dele.

Ming ia pular de novo para o teto da cabina mas decidiu poupar forças. Agachou-se no convés com os pés embaixo do corpo. Ficou olhando para a praia. Agora ouvia música de violão, que vinha de lá. As vozes da dona e do homem calaram. O barulho mais forte era o tchag-tchag-tchag do motor. Depois Ming escutou o homem subir a escada da cabina. Não se virou mas suas orelhas torceram-se para trás. Ming olhava a água logo abaixo, bem perto. Estranhou quando o som dos pés do homem atrás dele parou. O pêlo de sua nuca se arrepiou. Olhou de relance por cima do ombro direito. Nesse momento, o homem inclinou-se para a frente e veio de braços abertos contra Ming.

O gato disparou na direção do homem - a única direção segura no convés sem amurada. O homem atingiu Ming no peito com o braço esquerdo. O gato voou para trás, as garras arranhando o convés, mas as pernas traseiras passaram por cima da borda. Sem muito apoio, ele se agarrou na madeira fina com as patas dianteiras. Agitando as patas traseiras tentou voltar. O homem avançou com um pé contra as patas de Ming, mas bem nessa hora Elaine subiu da cabina.
- O que está acontecendo? Ming!!
As fortes pernas traseiras do gato o traziam pouco a pouco de volta ao convés. O homem ajoelhara-se como se fosse ajudar. Elaine também se ajoelhou e pegou-o pela nuca.
- Ele caíu! - dísse Teddíe. - Verdade! Ele está tonto. Cambaleou e caiu quando o barco adernou.
- É o sol. Coitadinho!
Elaine segurou-o contra o peito e levou-o para a cabina. - Teddie... você manobra? - perguntou ela, quando o homem também desceu. Elaine deitara Ming no beliche e conversava baixinho com ele. O coração do gato ainda estava acelerado. Ainda estava atento ao homem. Sabia que já iam desembarcar.

Ali estavam os amigos e aliados de Teddie, a quem Ming detestava por associação, os meninos mexicanos. Dois ou três deles, de shorts, chamaram o "señor Teddie" e quiseram ajudar Elaine a subir no cais, ofereceram-se para levar "Ming!, Ming!" para o cais, mas ele pulou sozinho e agachou-se à espera de Elaine, pronto para fugir. Várias mãos morenas vieram em sua direção e Ming teve de se esquivar. Houve risos, gritos, batidas de pés descalços. Mas também houve a voz tranqüilizadora de Elaine afastando-os. Ming sabia que ela estava ocupada trancando a cabina. Teddie e um dos meninos estendiam a lona por cima da cabina. Os pés de Elaine, de sandálias, pararam ao lado de Ming, que a seguiu quando ela se afastou.

Entraram no carro grande sem teto de Teddie, rumo à casa de Elaine e Ming. Um dos meninos dirigia. Elaine e Teddie conversavam num tom mais mais calmo. O homem ria. Ming ia sentado tenso no colo da dona. Sentia a preocupação de Elaine pelo modo como ela lhe afagava a nuca. O homem estendeu a mão para tocar as costas do gato e Ming rosnou baixo.
- Ora, ora - disse o homem, que fingiu achar graça mas afastou a mão.
A voz de Elaine parou no meio de alguma coisa que ela dizia. Ming, cansado, só queria dormir na cama grande coberta pela manta de lã. Quando se deu conta já estava em sua casa, suavemente colocado na cama com a coberta de lã macia. A dona beijou-lhe a cara e disse alguma coisa com a palavra "fome". Ele entendeu que deveria avisar quando tivesse fome. Adormeceu.

Acordou com as vozes que vinham do terraço com as portas de vidro abertas. Era noite. Ming via um lado da mesa e entendeu, pelo tipo de luz, que havia velas sobre ela. Concha, a empregada que morava na casa, tirava a mesa. Ming ouviu a voz dela, depois a de Elaine e a do homem. Sentiu cheiro de charuto. Pulou para o chão e sentou-se com os olhos no terraço. Bocejou, arqueou as costas, espreguiçou-se e se exercitou arranhando o tapete grosso de palha. Foi até o terraço e desceu em silêncío a escada comprida de pedra que ia para o jardim. O jardim era como uma floresta. Abacateiros e mangueiras chegavam à altura do terraço, havia buganvílias no muro, orquídeas nas árvores e magnólias e camélias plantadas por Elaine. Ming ouvia pássaros piando e se mexendo nos ninhos. Às vezes subia nas árvores até os ninhos, mas hoje não estava com vontade. As vozes da dona e do homem perturbavam-no. Hoje não se falavam como amigos. Concha ainda devia estar na cozinha, Ming resolveu ir pedir algo para comer.

O terraço estava vazio e Ming voltou para o quarto. Entrou e sentiu a presença do homem. O homem abria uma caixa na penteadeira. Ming rosnou um rosnado gutural que aumentava e diminuia. Ficou imóvel na posição em que estava, com a pata direita estendida para dar o próximo passo quando viu o homem. Preparou-se para pular em qualquer direção. O homem não o tinha visto.
- Ssssst- fez o homem para o gato. - Passa! - e bateu o pé sem muita força.
Ming não se mexeu. Ouviu o retinir do colar branco de sua dona. O homem enfiou o colar no bolso, passou pelo gato e seguiu para a sala. Ming ouviu uma garrafa bater contra um copo e o som de líquido correndo. Foi até a porta e tomou a direção oposta, da cozinha.

Miou e foi recebido por Elaine e Concha. Vinha música do rádio da empregada.
- Peixe? Porco. Ele gosta de porco - disse Elaine com as palavras engraçadas com que conversava com Concha. Ming deu a entender que preferia carne de porco, e foi atendido. Estava com fome. A dona falava com Concha, que exclamava "Aaaaaai!", e se agachou para acariciá-lo. Ming se deixou acariciar, de olhos fixos no prato, até Concha se cansar e ele poder comer em paz. Elaine saiu. Concha deu a Ming leite de lata. Ele adorava e deixou o pires limpo. Esfregou-se contra a perna dela em agradecimento e foi para a sala, para ir até o quarto. Elaine e o homem estavam no terraço. Assim que entrou no quarto Ming ouviu sua dona chamando:- Ming? Você está aí?

Ele foi até a porta do terraço e sentou-se. A luz da vela iluminava os cabelos longos, loiros e realçava a calça branca de Elaine, sentada à cabeceira da mesa. Deu uma palmada na coxa e Ming pulou em seu colo. O homem disse alguma coisa desagradável. Elaine respondeu no mesmo tom, mas riu um pouco. O telefone tocou e Elaine foi atender na sala.

O homem terminou a bebida, resmungou para Ming e deixou o copo na mesa. Levantou-se e tentou cercar o gato ou forçá-lo para a beirada do terraço. Ming percebeu a intenção do homem e também viu que ele estava bêbado: por isso movia-se desajeitado e devagar. O parapeito do terraço chegava à altura dos quadris do homem e tinha grades em três pontos. As barras das grades eram espaçadas e Ming podia passar entre elas, mas nunca passava. Só espiava por ali às vezes. O gato percebeu que o homem queria empurrá-lo pelas grades ou atirá-lo por cima do parapeito, e esquivou-se com facilidade. O homem pegou uma cadeira e acertou com ela o quadril do gato. Foi rápido e machucou. Ming fugiu pela primeira saída que viu, a escada para o jardim.

O homem descia atrás dele. Ming disparou de volta para cima, bem rente ao muro, pelo lado escuro. Sabia que o homem não o tinha visto. Pulou para o parapeito e lambeu uma pata para se recompor. Seu coração estava acelerado, como se estivesse no meio de uma briga. O ódio corria-lhe pelas veias e ardia-lhe nos olhos. Agachou-se. Ouvia o homem subir a escada com passos inseguros até aparecer à sua frente. Ming preparou-se para pular. E pulou com toda a força. Aterrissou com as quatro patas no braço direito do homem, perto do ombro. Agarrou-se ao paletó branco. Os dois rolaram escada abaixo. O homem gemeu. Ming continuou agarrado. Galhos estalavam. Ming não distinguia o que estava em cima e o que estava embaixo. Soltou-se do homem e caiu de lado. Quase que ao mesmo tempo, ouviu o baque do homem chegando ao chão lá embaixo, o corpo rolando - e o silêncio. O gato respirou de boca aberta até seu peito parar de doer. Do homem vinha o fedor de bebida e charuto e o cheiro que significava medo. O homem não se mexia.

Ming enxergava bem agora. Havia luar. Fez um longo caminho por entre arbustos, sobre pedras e areia, para chegar à escada. Subiu para o terraço. Elaine saía para lá.
- Teddie? - chamou e voltou para o quarto. Acendeu a luz. Foi até a cozinha. Ming seguiu-a. A luz estava acesa e Concha estava no quarto dela, de onde vinha o som do rádio. Elaine abriu a porta da frente. Ming viu que o carro do homem continuava parado na entrada. O quadril doía, mancava um pouco. Elaine notou, roçou-lhe as costas. Ming ronronou.
- Teddie? Onde você está? - chamou Elaine.
A mulher olhou com uma lanterna para o jardim, por entre os troncos dos abacateiros, por entre as orquídeas e flores cor-de-rosa das buganvílias. Ming, seguro a seu lado, no parapeito do terraço, seguia com os olhos a luz da lanterna e ronronava feliz. O homem não estava ali embaixo, estava mais adiante e para a direita. Elaine aproximou-se da escada e, com cuidado (porque não havia corrimão nem grade) apontou o facho de luz para baixo. Ming nem se deu ao trabalho de olhar.

- Teddie! Teddie!
Elaine desceu correndo. Ming não a seguiu. Ouviu-a gritar:- Concha!!
Voltou para cima. Elaine falou com Concha, que ficou muito nervosa. Elaine telefonou e depois desceu a escada junto com Concha.

Ming acomodou-se no terraço. Chegou um carro. Elaine foi abrir a porta da frente. Ming retirou-se para um canto mais escuro. Três ou quatro estranhos apareceram e desceram a escada. Houve muito falatório lá embaixo, passos e galhos quebrados e depois o cheiro deles todos escada acima - o cheiro de tabaco, o cheiro de suor e o cheiro familiar de sangue: sangue do homem. Ming estava satisfeito como quando matava um pássaro e sentia esse cheiro de sangue sob os próprios dentes. Presa grande, aquela. Quando o grupo passou carregando o cadáver, sem que ninguém notasse, ergueu-se e inspirou o perfume de sua vitória.

De repente todos tinham ido embora, até Concha. Ming bebeu água na cozinha. Depois foi para a cama da dona, enroscou-se nos travesseiros e dormiu. Acordou com o ronco de um carro estranho. Reconheceu os passos de Elaine e de Concha. As duas conversaram baixo, depois Elaine entrou no quarto. A luz continuava acesa. Ming viu sua dona abrir a caixa sobre a penteadeira e colocar ali o colar branco. Fechou a caixa e desabotoava a blusa mas antes se atirou na cama e acariciou a cabeça de Ming, levantou sua pata esquerda e apertou-a de leve até que as unhas aparecessem.
- Ah, Ming... Ming... e o gato reconheceu o tom da voz do amor.

sosgatinhos.

sábado, 5 de novembro de 2016

BLACKPINK – '휘파람' (WHISTLE)

AUDITION

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O filme que consagrou Takashi Miike no ocidente nem é o seu melhor filme, mas aqui vale o velho ditado de que até o seu pior filme é um puta filme.

Para ver Cabasuka Gakuen

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Sinopse do Hinabe subs: O Colégio Feminino Majisuka está prestes a fechar devido a problemas financeiros, e para não perder esse local tão importante em suas vidas, as estudantes decidem abrir um cabaré para juntar fundos. Para isso, contarão com a ajuda de Center, ex-aluna de Majisuka, e outros contatos que irão ajudar a transformar as jovens briguentas em elegantes damas da noite.

As lindas meninas do AKB48 em mais uma temporada de seu popular dorama, dessa vez exalando sensualidade e beleza. Para ver, clique na imagem.

hinabe subs.

Persépolis

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A obra prima de Marjane Satrapi. Um caleidoscópio de um país atribulado através dos anos. Puta filme e puta quadrinho.

The Silenced

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TEMA PARA UM SONHO ABISMAL

Réquiem para um sonho é um panorama do inferno, uma descida sem desvios ao horror. E um puta filme.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

PUREZA

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Meninas do AKB 48.

BRUXAS

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Foto por William Mortensen.

Mais um western para Tarantino

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Quentin Tarantino pensa em adaptar o livro de Elmore Leonard, Quarenta chibatadas menos uma, como uma mini série para a tv. 

"I've owned the rights for awhile”, Tarantino revealed at a New York press conference Monday. “I get them and I lose them and I get them and I lose them, but there is something about the piece that I think really demands that I make it. It's na Elmore Leonard book called Forty Lashes Less One and I actually think, if you want to call yourself a western director today, you need to do at least three westerns. Back in the '50s, it would be like 12, alright. But, today, it is three, if you really want to put your westerns on the shelf with people like Budd Boetticher and Anthony Mann and [Sam] Peckinpah and stuff. And I would really like to do Forty Lashes Less One as kind of a miniseries. ... I'd write it all and I'd direct it all, but maybe it's four hours or five hours. Something like that and it would fit right along lines with -- if you'd ever read the book -- it would fit right along the lines of The Hateful Eight and Django. It deals with race. It all takes place in Yuma Territorial Prison and it's a really good book and I've always wanted to tell the story. So, we'll see. I'm hoping I'll do that eventually."

via upi.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Ah, Satyricon de Fellini!

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A delirante e deslumbrante e sensual e arcaica Roma de Fellini.

UM FILME PARA WILSON

Deu até vontade de reler a maravilhosa obra de Daniel Clowes.

PARA LER AMOR E FOGUETES

love and rockets

Sinopse do gibiscuits: Em uma entrevista, Jaime Hernandez disse que terminaria as histórias das Locas quando Maggie chegasse aos 40 anos... Pois bem, este volume 2 da revista começa exatamente deste ponto. Maggie e Hopey quarentonas, dando amostras de que várias coisas aconteceram após o final do número 50 do volume 1. Gilbert não fez Palomar aqui, e sim uma nova série meio Garcia-Marquez, meio os trabalhos que ele fez pra Vertigo. Divirtam-se com esta nova fase da série!

Para ler, clique na capa.

gibiscuits.

A AMAZONA

PORNÔ

CONHEÇA O CONDE OLAF

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

OS DIAS

No primeiro dia pensei em me matar. No segundo, em virar padre. No terceiro, em beber até cair. No quarto, pensei em escrever uma carta para Marcela. No quinto, comecei a pensar na Europa e no sexto comecei a sonhar com as noites em Lisboa. Em seis dias Deus fez o mundo e eu refiz o meu.

Machado de Assis.

MONSTERS

“Monsters in movies are us, always us, one way or the other. They’re us with hats on. The zombies in George A. Romero’s movies are us. They’re hungry. Monsters are us, the dangerous parts of us. The part that wants to destroy. The part of us with the reptile brain. The part of us that’s vicious and cruel. We express these in our stories as these monsters out there.”

John Carpenter

terça-feira, 1 de novembro de 2016

PARA VER PROIBIDO!

Sinopse do canal de Marcílio: O diretor Samuel Fuller habilmente intercala imagens dos campos de extermínio alemães com cenas deste drama instigante, sobre um caso de amor proibido no pós-guerra. David é um soldado que está na Alemanha com o Governo Militar Americano. Ele se apaixona por Helga, uma jovem alemã, e ela retribui seus sentimentos. Mas seu romance não é tolerado por nenhuma das culturas.

Storyboards Logan

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THEME Merry Christmas Mr. Lawrence

Ryuichi Sakamoto é um desses artistas tocados por algo como Deus.

TRAILER Mifune: The Last Samurai

POSTER O BEIJO AMARGO

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FRAMES THE ROCKY HORROR PICTURE SHOW

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FRAMES DESAFIO DO ALÉM

desafio do além

FRAMES LOGAN

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