terça-feira, 30 de julho de 2013

A BELA ROSARIO DAWSON

rosario dawson trance

TRECHOS manual da destruição

alexandre dal farra

“as lembranças do passado de merda ficam nas nossas cabeças e não servem para porra nenhuma. eu fico lembrando das coisas, e acho isso uma merda, principalmente se as coisas que eu lembro têm a ver com a porra da rachadura na parede da casa da minha avó…”

“… seria melhor o grito. seria melhor não haver as palavras, só o grito, o grito desarticulado, sem lembranças, sem marcas. todas as palavras são marcas que carregam diversas outras coisas além  do que elas descrevem agora. as palavras vêm sempre maculadas do que elas já disseram antes, são palavras velhas de merda e se conectam todas com as fotos tiradas posteriormente pelo cérebro. palavras filhas da puta, marcadas pelo passado escroto!seria preciso ficar só no grito,  só o grito, o grito, o grito, eu sinto a gosma que reviveu dentro de mim e quer se tornar grito sem palavras…”

“tenho raiva desse mecanismo do meu cérebro,e tenho raiva particularmente da maneira como ele liga as memórias entre si, criando tramas infinitas em que eu me enredo e fico fora do lugar onde estou!(…) estou sentado na frente do meu portão de embarque onde há os animais escrotos esperando para ir viajar, e decidi lembrar de alguma merda, não importa o quê. estou me esforçando para lembrar de algo que não venha da minha relação orgânica com a vida, que não emerja da merda da situação de agora que me remete às outras merdas…”

monte de leituras.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

TRECHO Viva O Povo Brasileiro

João Ubaldo Ribeiro

Ogum desceu sobre o campo de batalha como um vendaval, nada deixando à sua frente, pois que ignora qualquer barreira e é conhecido como o que vai primeiro. Na sua frente, sobre um morrote verde, um grupo de soldados combatia em torno do estandarte da Segunda Companhia de Zuavos dos Voluntários da Pátria, da ilha de Itaparica, estandarte mantido no ar pelo Sargento Matias Melo Bonfim, feito de Ogum desde os sete anos, um de seus filhos mais valorosos. Vinha de Amoreiras, onde florescem os mimos-do-céu e os passarinhos cantam mais. Deixara seus dois filhinhos, Matilde e Baltazar, sua mulher Maricota e sua roça de milho e feijão, deixara sua mãe viúva e sua criação, prometendo voltar assim que ganhasse a guerra. Beijara a filhinha Matilde e o filhinho Baltazar na beira do atracadouro, antes de embarcar com seu vistoso uniforme para lutar pelo Brasil, abraçara sua mulher Maricota e sua mãe viúva e partira com o mesmo sorriso orgulhoso que estampava agora, portando o estandarte intocável da companhia insulana, que flutuava na brisa acima da batalha. Alegre por ser seu filho, Ogum se preparou para animá-lo e dar-lhe conforto, mas o chumbo fervente de uma bala inimiga mordeu o pescoço tenro do rapaz de Amoreiras, apagou seu sorriso e lhe toldou os olhos com o véu pardo da Morte, a qual lhe aspirou a alma pela boca, boca que nunca mais beijaria Matilde e Baltazar, nem nunca mais falaria para contar das belezas de Amoreiras, onde os mimos-do-céu florescem e cantam mais os passarinhos.

Ogum soltou um grito superior à canhonada e suas lágrimas quentes, de dor pelo filho morto, regaram o chão, tornando mais fumegante o sangue dos caídos. O estandarte oscilou, foi para um lado, foi para o outro, até que seu mastro tombou e ele se perdeu entre as cabeças dos combatentes. Como um cardume de atuns desbaratando uma manta de tainhas, como onças acossando a presa, como um enxame de abelhas enfurecidas, como matilhas de guarás despedaçando uns aos outros, paraguaios e itaparicanos se atiraram à luta pela posse do estandarte. Os Cabos Benevides e Arimatéa, brandindo as carabinas como cacetes, fizeram uma parede em torno do estandarte, para que seu companheiro Cabo Líbio o levantasse outra vez. Mas Cabo Líbio, ao erguer-se, teve a cabeça fendida pela cutilada de um sabre e caiu morrendo, a lembrança de sua linda Gamboa, terra onde os mariscos são fartos e as tardes frescas, esvoaçando ao ar de seus miolos partidos. Uma mão paraguaia apoderou-se do hastil, uma lançada no peito derrubou o Cabo Benevides e já o inimigo se preparava para amarfanhar o pavilhão intocável, quando Ogum, senhor das batalhas, mestre das armas, cujo nome é a própria guerra, disparou do alto e arrebatou a bandeira num puxavão que por um momento fez com que ela tremulasse entre as nuvens. Disse então o grande Ogum, ao Cabo Arimatéa:

– José de Arimatéa, mantém firme o estandarte intocável de tua terra, que agora te passo às mãos! Quem te fala é teu pai Ogum, senhor das batalhas, invencível no combate, cujo nome é a própria guerra! Não esqueci os meus filhos e estou aqui para não deixar que pereçam nas mãos do cruel inimigo. É imensa a minha dor, porque demorei a chegar e não pude evitar que matassem um de meus filhos mais valorosos, Matias Melo Bonfim, galardão de Amoreiras, onde florescem os mimos-do-céu e os passarinhos cantam mais. E pela mesma razão é também desmedida a minha fúria, que agora farei desabar sobre o inimigo. Estou a teu lado, vencerás! Ogum-ê!

E logo, como um redemoinho, como um catavento de aço, como vinte mil facões esfarinhando o ar, o grande Ogum, invencível no combate, cercou seu filho Cabo Arimatéa, enquanto ele suspendia bem alto o pavilhão, imune às balas e estocadas do inimigo.

todoprosa.

terça-feira, 16 de julho de 2013

TRECHO O Emblema Vermelho da Coragem

Stephen Crane

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Virou-se e viu o amigo correndo aos trancos e tropeções na direção de um pequeno grupo de arbustos. Diante da cena, seu coração parecia querer abandonar o corpo. Deu um gemido de dor. Em pouco tempo, ele e o maltrapilho saíam no encalço do outro. Era uma estranha corrida.

Quando alcançou o praça alto, começou a lhe dirigir apelos com todas as palavras que conseguia encontrar. “Jim… Jim… o que você está fazendo… o que houve… você vai se machucar!

Havia determinação no rosto do praça, que protestava mecanicamente, mantendo os olhos fixos no plano místico de suas intenções. “Não… não… não toca em mim… Me deixa, me deixa!”

O jovem, horrorizado e cheio de assombro com o comportamento do amigo, começou a questioná-lo com voz trêmula. “Aonde você vai, Jim? O que você está pensando? Hein, Jim, me diz…”

O praça alto se virou como se estivesse encarando perseguidores implacáveis. Havia em seus olhos um apelo enérgico. “Me deixa, está bem? Me deixa um minuto!”

O jovem se ressentiu. “Mas, Jim…”, disse, atordoado, “o que que há com você?”

O praça alto se virou e, capengando de modo periclitante, seguiu em frente. O jovem e o maltrapilho seguiram timidamente atrás, como se tivessem levado uma chibatada e se sentissem incapazes de enfrentar de novo o homem debilitado. Ideias solenes começaram a lhes ocorrer. Havia algo de ritualístico na ação do moribundo, algo que o aparentava a um devoto de alguma religião insana, capaz de chupar sangue, espremer carne, amassar osso. Sentiam um misto de reverência e medo. Deixaram-se ficar para trás, receando um possível acesso do homem a poderes ocultos e tenebrosos.

Por fim, viram-no parar e ficar imóvel. Apressando o passo, distinguiram em seu rosto a expressão de quem finalmente havia encontrado o lugar pelo qual lutara. Seu vulto magro estava ereto; as mãos pendiam calmas ao lado do corpo. O homem esperava pacientemente algo que viera encontrar. Estava no local combinado. O jovem e o maltrapilho aguardaram.

Houve um silêncio.

De repente, o peito do condenado começou a subir e descer num movimento tenso. A violência do ataque foi crescendo até que parecia haver um animal dentro dele, pulando e escoiceando furiosamente para se libertar.

Aquele espetáculo de estrangulamento gradual fez o jovem tiritar. A certa altura, quando o amigo revirou os olhos, viu neles algo que o levou a jogar-se no chão, chorando. Ergueu a voz, num último e supremo chamado.

“Jim… Jim… Jim…”

O praça alto abriu a boca e disse, erguendo a mão: “Me deixa… não toca em mim… me deixa…”.

Fez-se um novo silêncio de expectativa.

De repente, o corpo do homem se enrijeceu e se aprumou. Depois, foi sacudido por um demorado tremor. Ele fitava o vazio. Pareceu aos dois observadores que havia uma profunda, estranha dignidade nas linhas firmes de seu rosto medonho.

Uma estranheza aos poucos o envolvia. Por alguns instantes, a tremedeira de suas pernas o fez dançar uma horrenda quadrilha. Seus braços desferiam golpes no ar, junto da cabeça, com entusiasmo demoníaco.

O corpo alto estava teso e esticado ao máximo. Houve um leve ruído de dilaceramento e ele começou a tombar para a frente, lento, reto, como uma árvore caindo. Uma contorção muscular brusca fez seu ombro esquerdo tocar primeiro no chão.

O corpo pareceu quicar levemente ao encontrar a terra.

“Nossa!”, disse o soldado maltrapilho.

O jovem acompanhara, enfeitiçado, essa cerimônia no local combinado. As expressões de seu rosto traduziam toda a agonia que imaginava sentir o amigo.

Então, de um salto, chegou mais perto e olhou o rosto vítreo. A boca estava aberta, mostrando os dentes num riso.

Olhando a aba do casaco, aberta ao lado do corpo, o jovem notou que ela parecia ter sido mastigada por lobos.

Voltou-se, pálido e furioso, na direção do campo de batalha. Ergueu um punho ameaçador. Parecia a ponto de disparar um insulto.

“Inferno…”

O sol vermelho estava pregado no céu, como um lacre.

todoprosa.